domingo, 18 de maio de 2014

Postado dia 15/05/2014 às 16h50

Depois de 48 horas de silêncio – Vicente Serejo

Na edição do dia 23 de fevereiro de 2008 transcrevi aqui o texto que Saint-Exupèry escreveu quando soube que seu…

Na edição do dia 23 de fevereiro de 2008 transcrevi aqui o texto que Saint-Exupèry escreveu quando soube que seu amigo Jean Mermoz desapareceu no mar. Devo ao poeta Virgílio Maia que remeteu de Fortaleza um exemplar da história em quadrinhos ‘Mermoz’, de Attilio Micheluzzi, edição original italiana, 1999. Pedi a Mário Ivo Cavalcanti que fizesse a tradução para o português. Saint-Exupèry descreve a decolagem de Jean Mermoz da Lagoa do Bonfim para Dakar numa das travessias do Atlântico como piloto da Latécoère. Da leitura, não se pode afirmar, rigorosamente, que Saint-Exupèry viu com seus próprios olhos. Sua descrição do espelho de água e do terreno cheio de formigueiros pode ter sido narrada pelo próprio Mermoz, seu amigo. O texto foi originalmente publicado no livro ‘Meus Vôos’, de Jean Mermoz, edição Flamarion, Paris, 1937. Hoje a transcrição é uma homenagem ao vôo dos pilotos e o pouso nas margens da Lagoa do Bonfim, nos oitenta anos daquele instante histórico.
Antoine de Saint-Exupéry
Sim, é dramático, este desaparecimento. Sim, é terrível, este silêncio que se prolonga. Em outros dramas semelhantes, sempre me pareceu que se morria, não pelo acidente, mas pelo silêncio – que sepulta melhor que uma chuva de cinzas. Não se retorna depois de oito dias de silêncio.
Mas hoje, terceiro dia de um sumiço angustiante, somos muitos os que não aceitamos renunciar a Mermoz. Não abandonaremos o nosso companheiro. Recusamos, por enquanto, o testemunho da lógica. Essa, sim, nos enganou freqüentemente a seu respeito. Não é a lógica, mas o homem, quem dirige o curso da história. E assim é, seja nas grandes, seja nas pequenas coisas.
É por isso que hoje me recuso a desenhar um retrato ou escrever recordações que evoquem o luto. Chegará o tempo de chorarmos por Mermoz, se ele renunciar a reaparecer ainda uma vez. Porque ele é dono de uma teimosia admirável, e é exatamente por essa teimosia que a sua coragem é tão especial: Mermoz sempre negou as evidências.
Em 1929, ele tinha que decolar de Natal, pela primeira vez, em direção à África. Na primeira tentativa, percebeu que a decolagem era impossível. Mas, desde o alvorecer até o crepúsculo, ele persistiu através de esforços que pareciam absurdos. Riscou, em todas as direções, o reflexo de Natal na água, polido como um espelho, e, mesmo sem vento, no momento do pôr-do-sol, quando parecia evidente a prova de sua impotência, decolou.
Repetiu aquela aventura a bordo do “Couzinet”, novamente em Natal, mas desta vez sobre um terreno duro e cheio de cupinzeiros. As suas decolagens morriam entre o lamaçal. E tudo apontava para um acidente seguido de incêndio. Mas a cada dia ele recomeçava. Até vencer, mais uma vez, contra qualquer evidência.
E nos habituamos a vê-lo retornar. Nos primeiros anos da Linha do Sul, findou, graças a um defeito, no fundo do Rio del Oro. Sobre ele caiu o silêncio. Mas por trás de uma calma aparentemente passiva, Mermoz lutava pelo seu retorno. E oito dias depois, quando não se esperava mais nenhuma notícia sua, voltou para nós, com seu sorriso imenso.
Desapareceu, outra vez, nos Andes. Aquelas montanhas não costumam devolver os homens que lhes são oferecidos em sacrifício. Não havia um só argentino, nem um único chileno, que acreditasse no retorno de Mermoz. Ninguém o esperava, com exceção de alguns companheiros que mantinham a juventude no coração. Uma tarde, pousando sobre o pasto fresco de Santiago, como voltando de um vôo aprazível, Mermoz desce, de uma altitude de 4.500 metros. Tinha, em qualquer modo, cortado o laço que o mantinha prisioneiro. E ria, mais uma vez.
E ei-lo, hoje, retomando esta ausência, por trás da qual, no silêncio e na discrição de uma luta interna, enfrenta o gelo, o fogo ou o mar. E da qual só retornará com aquele sorriso encantador forjado nas grandes vitórias.
Claro, Mermoz não pode prolongar esse atraso. É certamente muito grave que a mensagem sobre o defeito não tenha sido seguida por outra, um SOS ou o aviso de uma amerissagem. É dramático que o hidroavião, uma vez amerissado, não tenha enviado qualquer outra mensagem. Mas existe ainda a possibilidade de um defeito no rádio. Improvável? É verdade, mas as nossas desafortunadas construções lógicas já receberam tantos desmentidos! E ainda que o hidroavião tivesse afundado tão rapidamente, impedindo o envio de uma mensagem, resta ainda o bote inflável. Os tripulantes poderiam ter tido tempo de lançá-lo à água.
Se aqueles homens estão à deriva, a bordo daquela minúscula embarcação, ainda que insubmergível, é claro que não podem ser salvos. Guillaumet, que os procura a bordo do seu Farman, não tem dez anos disponíveis para perquirir aquela porção do oceano. Mas o milagre de um encontro ainda é possível. Mermoz, amanhã, talvez, ainda pode sorrir para nós.
E, no entanto… há alguns meses o mecânico Collenot desapareceu no Atlântico Sul, durante um travessia semelhante. Era um velho companheiro de Mermoz, com quem havia compartilhado alegrias e tristezas. A sua morte chocou o grande piloto, e foi a única ocasião em que o vi desanimado. Examinou as próprias mãos, impotentes para o salvamento. E me disse: “Collenot não poderia ter desaparecido senão comigo. A fatalidade não foi justa ao separar esta tripulação…”
Fonte: Jornal de Hoje,Natal/Rn.





 

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